mercredi 5 octobre 2011

OPERACÕES 3° ANO ANGOLA

Mensagempor PEREIRA GARCEZ » 04 Out 2011, 13:58

RETALHOS DA VIDA DE UM COMBATENTE
OPERACOES DO 3°ANO MARCO DE 64

Havia muito, desde o início das hostilidades, que aquela zona de Nambuangongo, e arredores, era considerada como um vespeiro terrorista, até porque, em realidade, foi ali mesmo que o terrorismo teve o seu início, razão porque o Paris Match, em seus artigos, se referia àquela zona como sendo o "Triângle pourri".
Sendo, pois, o pequeno pedaço de maçã podre de todo o vasto território angolano, e continuando a sua acção, e influência, por tempo já por demais considerado inconveniente, decidiu-se o Q.G. terminar com a situação planeando uma operação em larga escala, nela empenhando todos os meios terrestres, e aéreos, então disponíveis.
De facto naquela restrita zona, ao invés das nossas tropas a ela levarem a pacificação, e consequente normalização do seu aparelho produtivo, económico, e social, antes persistia em nos permanecer activamente adversa, constantemente alimentada que era, idiológica e materialmente, por potências estrangeiras que a si mesmo se justificavam por uma justa cruzada de libertação, não se sabe se dos povos para si mesmos, se dos povos de nós, portugueses, para eles. Realmente, e isto nos contaram, que o não vimos, chegaram mesmo a encontrar-se armas por debaixo do altar de uma missão religiosa estrangeira, a qual utilizava os evangelhos para incitar os indígenas contra nós.
Ora entre as muitas centenas de homens que faziam parte dos meios terrestres, o nosso grupo de Comandos, de duas dezenas de homens, era um deles. Fomos então chamados ao Q.G., claro, onde, após tomada de conhecimento e estudo possível da nossa intervenção no plano geral das operações, nos deram ordem de partida em direcção a Nambuangongo.
E no dia seguinte, como sempre, pela manhãzinha, ataviados, armados, e municiados, eis que rumamos pela estrada do Cacuaco, rumo a norte, sozinhos, como tantas vezes o fizeramos já. Claro que a tensão não nos deixava admirar tudo por quanto passávamos com aquele gosto que só na descontracção se alcança, mas deixava o suficiente para vermos como tudo aquilo era lindo e belo, e então aquela sensação única de vastidão sem fim, e liberdade, foi coisa que nunca mais esquecemos e tanta saudade ainda hoje nos faz sentir.
Até ao Onzo, já não muito longe do nosso destino, onde chegámos de noite, foi uma viagem normal e sem história. Aí pernoitámos e iniciámos a nossa missão.
O comandante do acampamento, cujo nome já nos não lembra, era um capitão miliciano, natural de Angola, que, como caçador que também era, como todos os demais então por lá, era um pisteiro extraordinário e profundo conhecedor daquelas terras e gentes, pelo que muito apreciávamos. Foi lá, com os seus militares, que fizemos a nossa primeira intervenção na zona. Não estabelecemos contacto mas marcámos presença.
Após isto seguimos para Nambuangongo, no dia seguinte, numa viagem breve.
Encontra-se a vila, que não tem mais que meia dúzia de casas, no alto de um morro não muito elevado, porém suficientemente sobranceiro a todo o horizonte em redor, o que permite dela se ter uma panorâmica geral muito agradável e extensa.
Após a longa subida que a ela conduz, a primeira coisa que se divisa, do lado esquerdo, é a sua igreja tipicamente portuguesa, já então à nossa chegada restaurada, e que no início das hostilidades fora completamente vandalizada e danificada. Ao lado direito ficava um forno, recentemente construído pela nossa tropa, onde era cozido o pão para todo o pessoal militar, que então civis ainda não havia por lá desde 61. Na continuação sul da posição do forno, para onde o morro, terraplanado, se continua, encontrava-se o campo de aviação, nesta altura fervilhando de Alouettes, 10 ou 12, e onde, a miúde, se elevava e descia o Dornier de reconhecimento.
Continuando a entrar na vila, logo à direita, frontalmente à igreja, encontravam-se umas casas então ocupadas por uma Companhia de Cavalaria comandada pelo nosso muito querido camarada e amigo, Capitão Jaime Alvim de Faria Afonso, voluntário da G.N.R., de saudosa memória, pois que veio a falecer, mais tarde, em combate, no norte de Moçambique. Foi aí que ficámos instalados.
A seguir à igreja, à esquerda, ficavam apenas uns pavilhões que serviam de dormitório aos militares, e mais uns largos telheiros onde se encontravam os refeitórios, além dos armazéns e paióis. A norte, numa ligeira elevação sobranceira à restante vila, ficavam umas casitas onde se situava o comando militar de toda a vila, na altura entregue ao, por todos conhecido, Coronel "Totobola". Não sabemos porque o alcunharam assim.
Ora encontrando-se o comando de toda aquela vasta operação, que então se realizava, exactamente nas instalações da Companhia de Cavalaria onde foramos aquartelados, aconteceu que enquanto aguardávamos o momento da nossa intervenção, foi aí que nos apercebemos, pela quantidade de mensagens a viva voz, em cripto, ou mesmo morse, que captávamos nos aparelhos de escuta propositadamente para lá levados de Luanda, que nos apercebemos da magnitude da intensa actividade militar de que a operação se revestia, quilómetros em redor, e, parte a parte, do seu aspecto humano. De facto, a informação que nos chegava era profusa e intensa. Eram ordens, avisos, gritos, às vezes aflitivos, imprecações, não só em português e dialecto, mas também em francês, inglês, e russo, que por esse tempo parece que o chinês ainda se não usava. Trabalhavam à distância. Só idiologia e armas.
E, neste contexto, a nossa entrada em cena não se fez esperar.
Alguns quilómetros a leste da vila, havia tropa nossa encurralada, que era incapaz de progredir. Cabía-nos então a nós desencravar a situação. E dois ou três hélis logo nos levaram ao local em 15 minutos. Nada mais rápido.
Escolhida a posição de salto, minúscula clareira de vegetação mais rasteira entre árvores frondosas, foi aí que nos deixaram. O reencontro com a tropa que já lá andava, havia dias, não demorou muito. Aliás foi um encontro interessante porque aí, em plena floresta, fora de todo o mundo civilizado, demos de caras com um primo nosso que há muito já não víamos, o Zé Manel, então Tenente de Mar-e-Guerra. Foi uma festa e alegria, apesar do momento. O ser humano tem destas coisas.
Estudámos então a situação, traçámos objectivos, azimutes, e toca a andar. Mas a fila era interminável, composta por um pelotão de fusileiros, onde estava o nosso primo, um pelotão de cavalaria, e uma companhia inteira de paraquedistas. Ora isto não é coisa minimamente manobrável, nem táticamente aceitável, numa zona de floresta cerrada e desconhecida. Se fosse para fazer o cerco a uma região, ou objectivo, perfeitamente identificado e definido, estaria certo, mas assim não era mais que um desperdício de homens e uma atrapalhação. Os vietcongs podiam fazê-lo na pista de Ho Chi Min, porque os senhores da região eram eles e por isso podiam dispersar-se, e reencontrar-se, sempre que quisessem, ou fosse necessário, pois conheciam bem o seu terreno. Mas aqui, ai do homem que ficasse sozinho ou se perdesse. Além disso era quase impossível uma tão grande massa de gente passar despercebida.
Fosse como fosse, tomámos o comando das operaçãos e reiniciámos a operação em busca de qualquer possível inimigo.
Mas não era fácil. O meio circundante era cineasticamente atemorizador, difícil, e a qualquer barulho mais estranho, ou pressentimento de perigo, logo alguém, algures na coluna, parava, e tudo se detinha. E não há dúvida que temos a plena consciência do perigo a que todos estivemos sujeitos, numa floresta quase impenetrável, luxuriante, onde bastava meia dúzia de atiradores inimigos, bem conhecedores do terreno, para nos montar uma emboscada e retirar-se sem qualquer possibilidade útil de resposta nossa para além do desbaste provocado por uma chuva de balas no emaranhado da vegetação que nos rodeava. Tínhamos bem a noção do perigo, e por isso, à frente, os nossos sentidos, reflexos, e instintos, iam a cem por cento.
Ao fim do dia, porém, todos conseguimos sair ilesos da situação e rumar noutro sentido e missão. Nos dias seguintes perseguimos objectivos que se nos esfumaram, ou não fosse a luta de guerrilha uma luta de gato e rato, onde o bate e foge é regra primeira e o guerrilheiro, se avisado, raramente estabelece frontalmente contacto senão quando em emboscada ou confirmada superioridade, o que não acontecia. Dois ou três dias depois, sem que o esperássemos, recebemos ordem de retirada a fim de sermos lançados noutra zona onde a nossa presença terá sido entendido por mais conveniente. E assim, tal como nos foram levar, depressa os helis nos vieram recolher e levar a Nambuangongo, onde pernoitámos, e nos reabastecemos, para a missão seguinte.
Neste entrementes, porém, alguns factos houve que, embora não directamente relacionados connosco, nos fizeram pensar mais profundamente na vida. Acontecera que por essa manhã do dia seguinte à nossa recolha, se ouviu, por toda a vila, o respeitável cadenciar duma browning a vomitar fogo. Nada mais normal, dir-se-ia, num clima de guerra.
Só que, aí, de normal não teve nada.
E o que se passou foi o seguinte: Sucedeu que o piloto do heli de protecção à esquadrilha, o "Cobra", que possuia quatro metrelhadoras browning acopuladas em paralelo, estava, nessa manhã, a limpar o dito armamento. E, como sabemos, cada uma delas tem, independentemente, uma cavilha de segurança que a inibe de disparar. Ora após a limpeza havendo, por confusão, decerto, julgado o piloto que as quatro metrelhadoras estavam travadas, ao verificar o gatilho comum, uma delas disparou a sua carga mortífera sem que nada a pudesse deter. E, por fatídica coincidência, ou não, já que bastaria o desvio de um simples milímetro para que a trajectória fosse outra, o cano estava a apontar exactamente para o forno do pão, que bem cedo começara a trabalhar. E quem estava lá nesse dia? Um soldado que, para fugir às operações, dera parte de doente e fora tabalhar como padeiro para o forno, que se encontrava a cerca de 50 metros e era feito de tijolo próprio, grosso e maciço, para resistir às altas temperaturas. Mas o que poderia resistir a uma rajada de Browning, que o atravessou como manteiga? E o pobre rapaz nem soube do que morreu. Mais lhe valera ter ido à operação. Mas quem o poderia adivinhar? Grande consternação e luto em todas as nossas gentes.
Logo a seguir, chegam helicópteros com mortos e feridos. Quem são, quem não são, mas logo tivemos resposta dolorosa e crua. Exactamente aqueles camaradas que ainda há poucas horas havíamos deixado, haviam sofrido uma emboscada pouco depois da nossa partida. Um tenente e mais dois soldados mortos, e uns quantos feridos. Mais uma mágua e dor. Dia de grande tristeza em todo o pessoal.
Todavia essa circunstância foi tão acutilante que nos levou a reflectir: Porque havíamos sido nós mais desta vez poupados? Porquê? Mérito nosso? Tolice pensar em tal. Temos a plena consciência, e real percepção, das circunstâncias por que houveramos passado, para que a tal pretensão nos pudesse levar a nossa análise. E se a isto acrescentarmos mais ainda tudo quanto até então havíamos passado, as emboscadas das quais saíramos ilesos --e de que maneira-- se ponderarmos na mina que pisámos, sem explodir, ou na armadilha de estacas em que caímos e que, contra todas as evidentíssimas probabilidades, não funcionou, além das saraivadas de balas que vimos levantar o pó ou sibilar nas folhas do arvoredo que nos rodeava, se pensarmos em tudo isto, tudo tão fora de qualquer poder de decisão ou de reacção nossa, não podemos ter outra resposta senão a do silêncio e da humildade.
Será verdade que a Audaces Fortuna Juvat, mas isso não chega.
O único mérito que se nos poderá apontar foi o de, sem dúvida, termos combatido desinteressadamente pela nossa Pátria e por todos os valores que então ela representava, e pelo igualmente desinteressado tanto amor que sempre sentimos por toda aquela terra e suas gentes, de todas as cores, que sentimos como irmãos de nós em Deus. Se isto foi mérito, o de amarmos, simplesmente, então talvez tenha sido por isso que fomos poupados. Talvez... não sabemos. Fosse porque fosse, muito e muito obrigado.
Um abraço

Pina Navarro Alf.Mil°CMD Grupo Apaches

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